Alberto Moravia
Tradução de Nilson Moulin
In: Histórias da Pré-História (Editora 34)
Há bilhões de anos, tudo era muito mais descontraído que hoje e ainda se podia ir até a mãe Na Tureza e queixar-se sobre o modo como ela andava criando o mundo. Mãe Na Tureza era uma mulherona gigantesca, tão grande que, se alguém subia em sua cabeça, mesmo com uma boa luneta, não conseguia ver-lhe os pés; ficava deitada numa planície interminável, tendo como travesseiro uma montanha e como cama um deserto; e criava o mundo sonhando. Mas seus sonhos não eram como os nossos, que, uma vez acordados, adeus – quem se lembra mais deles? Os sonhos da mãe Na Tureza tornavam-se imediatamente realidade. Por exemplo: certo dia, mãe Na Tureza sonhou um animal realmente estranho: uma espécie de guarda-chuva que andava com quatro patas e tinha uma cabeça e um rabo. E pronto, imediatamente, no colo da mãe Na Tureza, eis que se debate penosamente a ridícula Tarta Ruga. E querem saber por que tinha sonhado um animal assim? Porque alguém viera dizer-lhe que seria uma boa criar um animal que, quando chovesse, pudesse proteger-se da chuva sem recorrer a nenhuma caverna ou saliência de rocha. Isso para dizer-lhes que mãe Na Tureza possuía um caráter afetuoso e complacente, conforme convém a toda mãe.
Bom, certo dia, uma delegação de Por Quinhos, após uma escalada de muitas horas, chegou até o cume da montanha na qual mãe Na Tureza apoiava a cabeça. O chefe da delegação, tendo se colocado debaixo da orelha colossal, berrou com todas as suas forças:
– Mamãe! Mamãe! Mamãe!
Mãe Na Tureza ergueu uma pálpebra grande como uma cúpula, com cada cílio da grossura de um tronco de árvore, revelando a pupila verde que parecia um lago, e perguntou languidamente:
– Queridinho, o que está acontecendo? Diga à sua mamãe qual é o problema.
Diante desta afetuosa pergunta, o Por Quinho respondeu:
– Como você sabe, nós Por Quinhos somos uma comunidade pacífica, em que todos desfrutam dos mesmos direitos e são submetidos aos mesmos deveres. Porém, faz algum tempo que não é mais assim.
– Ou seja...?
– Ou seja, alguns de nós, não sabemos se por sua vontade, mamãe, ou por acaso, transformaram-se e, dói dizer isso, não para melhor: a delicada pele cor-de-rosa cobriu-se de cerdas pretas; da boca, saem alguns dentes agudos e recurvos que é difícil não chamar de presas. Esses indivíduos, que se autodenominaram Ja Valis, são violentos e prepotentes e, graças às suas presas, criaram uma verdadeira tirania, segundo a qual eles comandam e nós temos de obedecer. Mãe Na Tureza: tome uma providência.
Mãe Na Tureza objetou:
– Eu, para dizer a verdade, criei todos iguais. Que história é esta? Estão dizendo a verdade?
Os Por Quinhos lhe garantiram em coro que era verdade. Mãe Na Tureza refletiu, suspirou, depois disse:
– Essas tais presas me fazem pensar que tive um sonho, digamos, meio feio, algo parecido com um pesadelo. Acontece que às vezes faço uma refeição pesada e aí pode acontecer de sonhar monstros. Pois, como não Chamar de monstro um Por Quinho de cuja boca saltam duas presas?
– É o que pensamos nós também! – exclamaram os Por Quinhos.
– E depois – continuou mãe Na Tureza –, criaturas assim, prepotentes e sanguinárias, contradizem completamente a idéia que faço da Criação, na qual deveria reinar a razão.
Os Por Quinhos nunca tinham ouvido falar da razão. Perguntaram em coro:
– Razão? O que é a razão? Mãe Na Tureza respondeu:
– É alguma coisa, digamos, como o sal na comida. Em geral, não esqueço de pôr uma pitada em qualquer animal que sonho. Quer dizer que, doravante, vou pôr uma porção generosa. Além disso, faz algum tempo que sinto um desejo obscuro de pôr no mundo um certo animal bem complicado que, justamente, deveria ser dotado de razão em medida maior que os outros. Agora, no jantar, vou ficar atenta para comer coisas leves, depois vou dar uma boa dormida e creio que sonharei o animal racional que, entre outras coisas, salvará vocês de seus malvados Ja Valis. Assim, caros Por Quinhos, voltem confiantes para casa, deixem sua mãe que lhes quer bem cuidar das coisas e vocês vão ver que tudo há de se resolver da melhor forma.
Naturalmente, os Por Quinhos logo se retiraram cheios de gratidão e de temor reverente: mãe Na Tureza, naqueles tempos distantes, além de tudo, perdia a paciência com facilidade: um bando de animalzões chamados dinossauros, que costumavam vir com excessiva freqüência expor suas lamúrias (gostariam de ser menores e menos estúpidos), tinham sido dizimados até o último; contudo, tinham vivido a ninharia de cento e cinqüenta milhões de anos. Foram embora os Por Quinhos e, durante algum tempo, digamos setecentos ou oitocentos milhões de anos, não aconteceu nada. Mãe Na Tureza, conforme prometido, fizera uma refeição leve no jantar: apenas um ou dois vulcões com toda a lava, regados por um rio de médio porte; e agora, dormia a sono solto. Só a cada dois ou três séculos dava um suspiro ou então virava para o outro lado. Mas pensem um pouco no que significa ser mãe Na Tureza! Aqueles suspiros criaram os ventos que até hoje sopram pelos ares. E quanto a virar-se de lado, toda vez que sucedeu, houve um terremoto que mudou um pouco a cara da Terra.
Chegou finalmente o dia do despertar. Era um dia perfeito: de manhã cedo, com o céu do mais puro azul ainda tingido de rosa; sem um fiapo de vento; com um sol leve, uma luz límpida, árvores nunca antes tão verdes, flores jamais tão resplandecentes. Mãe Na Tureza despertou, ergueu-se sobre um cotovelo e teve apenas tempo de vislumbrar, lá longe, no fundo do deserto no qual estava estendida, duas figurinhas remotas que se afastavam, de mãos dadas e cheias de confiança: um homem e uma mulher. Caminhavam sobre duas pernas; mãe Na Tureza pensou que desta vez havia sonhado a sua obra-prima. Satisfeita, acompanhou com os olhos as duas figuras que, banhadas de luz, afastavam-se cada vez mais e por fim desapareceram. Então, virou-se de lado e adormeceu novamente.
Seu sono durou pouco: só um bilhão de anos. Abriu os olhos, ainda confusa, ouviu vozes, voltou-se: lá estava, aos pés da montanha que lhe servia de travesseiro, a costumeira delegação de Por Quinhos. Mãe Na Tureza esticou a mão e os trouxe até a altura dos olhos. Perguntou, depois:
– Bom, vocês de novo. Como foram as coisas? E o bichinho:
– Muito bem, não poderia ter sido melhor. Você sonhou a coisa certa na hora certa.
– Ou seja?
– Apareceram uns Por Quinhos iguais a nós, igualmente rosados, tenros, doces e indefesos, com a única diferença que nós andamos com quatro patas e eles com duas; e nos levaram para longe dos detestáveis Ja Valis, para um lugar magnífico, em que não falta nada, absolutamente nada, para ser felizes.
– E como é esse lugar? – perguntou mãe Na Tureza com curiosidade.
– São instalações de um andar só, com várias divisões e em cada uma dá para alojar uma família inteira. Os Por Quinhos de duas patas providenciam para que não nos falte nada. Assim, em horários regulares, nos servem uma refeição excelente, composta de sêmola, farelo, bagas e uma deliciosa lavagem cheia de maçãs podres e batatas estragadas. E ainda nos lavam a todos, pra valer, com mangueiras.
– Enfim, nos tratam bem: tudo é limpo, espelhado, cintilante. Imagine que para não cairmos nos degraus, quando saímos do barracão para passearão ar livre, construíram até uma rampa na qual os nossos cascos não escorregam.
Mãe Na Tureza comentou satisfeita:
– Muito bem, muito bem, parece que desta vez sonhei os animais mais racionais dentre todos os que pus no mundo. Agora, meus filhos, estou com sono e desejo tirar uma soneca. Mas quero que me mantenham informada. Voltem, digamos, dentro de um milhar de anos. Boa noite.
Passaram-se mil anos. Mãe Na Tureza despertou, esticou-se e, sem mais nem menos, encontrou-se cara a cara com o Por Quinho de sempre, que logo berrou como um louco:
– Mamãe, traição, traição!
– Como assim?
– Aqueles seres que chamamos de Por Quinhos com duas patas são uns monstros, autênticos monstros. Tratam-nos bem, nos mantêm limpos e bem nutridos, nos engordam: mas sabe para quê?
– Não, para quê?
– Para nos comer. Num determinado momento, quando estamos gordos no ponto ideal, pronto, nos amarram pelos pés numa espécie de corrente que desliza. A corrente desliza com um barulho terrível e eles, pouco a pouco, nos degolam, tiram nosso sangue, nos esquartejam, nos fazem em pedaços. Não me detenho sobre o modo pelo qual esses pedaços são depois preparados; basta dizer que somos transformados em vários produtos que eles, ao que parece, chamam de lingüiças, presuntos, pernis, salames e assim por diante, segundo a parte de nosso corpo que foi usada: horror, horror, horror. E você nos havia prometido que sonharia o animal mais dotado de razão dentre todos. Ai de nós, ele usa a razão para nos devorar! E ainda por cima para devorar-nos com a nossa própria colaboração! Ai de nós, mamãe, você também nos traiu!
Agora, alguém há de querer saber o que respondeu mãe Na Tureza a essa calorosa e desesperada crítica. Ninguém vai acreditar: não respondeu nada. Pegou o Por Quinho entre dois dedos, depositou-o com delicadeza no chão, virou-se de lado e adormeceu de novo.