domingo, 22 de junho de 2008

Os sonhos da mamãe produzem monstros

Alberto Moravia

Tradução de Nilson Moulin

In: Histórias da Pré-História (Editora 34)

Há bilhões de anos, tudo era muito mais descontraído que hoje e ainda se podia ir até a mãe Na Tureza e queixar-se sobre o modo como ela andava criando o mundo. Mãe Na Tureza era uma mulherona gigantesca, tão grande que, se alguém subia em sua cabeça, mesmo com uma boa luneta, não conseguia ver-lhe os pés; ficava deitada numa planície interminável, tendo como travesseiro uma montanha e como cama um deserto; e criava o mundo sonhando. Mas seus sonhos não eram como os nossos, que, uma vez acordados, adeus – quem se lembra mais deles? Os sonhos da mãe Na Tureza tornavam-se imediatamente realidade. Por exemplo: certo dia, mãe Na Tureza sonhou um animal realmente estranho: uma espécie de guarda-chuva que andava com quatro patas e tinha uma cabeça e um rabo. E pronto, imediatamente, no colo da mãe Na Tureza, eis que se debate penosamente a ridícula Tarta Ruga. E querem saber por que tinha sonhado um animal assim? Porque alguém viera dizer-lhe que seria uma boa criar um animal que, quando chovesse, pudesse proteger-se da chuva sem recorrer a nenhuma caverna ou saliência de rocha. Isso para dizer-lhes que mãe Na Tureza possuía um caráter afetuoso e complacente, conforme convém a toda mãe.

Bom, certo dia, uma delegação de Por Quinhos, após uma escalada de muitas horas, chegou até o cume da montanha na qual mãe Na Tureza apoiava a cabeça. O chefe da delegação, tendo se colocado debaixo da orelha colossal, berrou com todas as suas forças:

– Mamãe! Mamãe! Mamãe!

Mãe Na Tureza ergueu uma pálpebra grande como uma cúpula, com cada cílio da grossura de um tronco de árvore, revelando a pupila verde que parecia um lago, e perguntou languidamente:

Queridinho, o que está acontecendo? Diga à sua mamãe qual é o problema.

Diante desta afetuosa pergunta, o Por Quinho respondeu:

– Como você sabe, nós Por Quinhos somos uma comunidade pacífica, em que todos desfrutam dos mesmos direitos e são submetidos aos mesmos deveres. Porém, faz algum tempo que não é mais assim.

– Ou seja...?

– Ou seja, alguns de nós, não sabemos se por sua vontade, mamãe, ou por acaso, transformaram-se e, dói dizer isso, não para melhor: a delicada pele cor-de-rosa cobriu-se de cerdas pretas; da boca, saem alguns dentes agudos e recurvos que é difícil não chamar de presas. Esses indivíduos, que se autodenominaram Ja Valis, são violentos e prepotentes e, graças às suas presas, cria­ram uma verdadeira tirania, segundo a qual eles coman­dam e nós temos de obedecer. Mãe Na Tureza: tome uma providência.

Mãe Na Tureza objetou:

– Eu, para dizer a verdade, criei todos iguais. Que história é esta? Estão dizendo a verdade?

Os Por Quinhos lhe garantiram em coro que era ver­dade. Mãe Na Tureza refletiu, suspirou, depois disse:

– Essas tais presas me fazem pensar que tive um sonho, digamos, meio feio, algo parecido com um pesa­delo. Acontece que às vezes faço uma refeição pesada e aí pode acontecer de sonhar monstros. Pois, como não Chamar de monstro um Por Quinho de cuja boca saltam duas presas?

– É o que pensamos nós também! – exclamaram os Por Quinhos.

– E depois – continuou mãe Na Tureza –, criaturas assim, prepotentes e sanguinárias, contradizem completamente a idéia que faço da Criação, na qual deveria reinar a razão.

Os Por Quinhos nunca tinham ouvido falar da razão. Perguntaram em coro:

– Razão? O que é a razão? Mãe Na Tureza respondeu:

– É alguma coisa, digamos, como o sal na comida. Em geral, não esqueço de pôr uma pitada em qualquer animal que sonho. Quer dizer que, doravante, vou pôr uma porção generosa. Além disso, faz algum tempo que sinto um desejo obscuro de pôr no mundo um certo animal bem complicado que, justamente, deveria ser dota­do de razão em medida maior que os outros. Agora, no jantar, vou ficar atenta para comer coisas leves, depois vou dar uma boa dormida e creio que sonharei o animal racional que, entre outras coisas, salvará vocês de seus malvados Ja Valis. Assim, caros Por Quinhos, voltem con­fiantes para casa, deixem sua mãe que lhes quer bem cuidar das coisas e vocês vão ver que tudo há de se re­solver da melhor forma.

Naturalmente, os Por Quinhos logo se retiraram cheios de gratidão e de temor reverente: mãe Na Tureza, naqueles tempos distantes, além de tudo, perdia a paciência com facilidade: um bando de animalzões chamados dinossauros, que costumavam vir com excessiva fre­qüência expor suas lamúrias (gostariam de ser menores e menos estúpidos), tinham sido dizimados até o último; contudo, tinham vivido a ninharia de cento e cinqüenta milhões de anos. Foram embora os Por Quinhos e, durante algum tempo, digamos setecentos ou oitocentos milhões de anos, não aconteceu nada. Mãe Na Tureza, conforme prometido, fizera uma refeição leve no jantar: apenas um ou dois vulcões com toda a lava, regados por um rio de médio porte; e agora, dormia a sono solto. Só a cada dois ou três séculos dava um suspiro ou então vi­rava para o outro lado. Mas pensem um pouco no que significa ser mãe Na Tureza! Aqueles suspiros criaram os ventos que até hoje sopram pelos ares. E quanto a virar-se de lado, toda vez que sucedeu, houve um terremoto que mudou um pouco a cara da Terra.

Chegou finalmente o dia do despertar. Era um dia perfeito: de manhã cedo, com o céu do mais puro azul ainda tingido de rosa; sem um fiapo de vento; com um sol leve, uma luz límpida, árvores nunca antes tão ver­des, flores jamais tão resplandecentes. Mãe Na Tureza despertou, ergueu-se sobre um cotovelo e teve apenas tempo de vislumbrar, lá longe, no fundo do deserto no qual estava estendida, duas figurinhas remotas que se afastavam, de mãos dadas e cheias de confiança: um homem e uma mulher. Caminhavam sobre duas pernas; mãe Na Tureza pensou que desta vez havia sonhado a sua obra-prima. Satisfeita, acompanhou com os olhos as duas figuras que, banhadas de luz, afastavam-se cada vez mais e por fim desapareceram. Então, virou-se de lado e adormeceu novamente.

Seu sono durou pouco: só um bilhão de anos. Abriu os olhos, ainda confusa, ouviu vozes, voltou-se: lá estava, aos pés da montanha que lhe servia de travesseiro, a costumeira delegação de Por Quinhos. Mãe Na Tureza esticou a mão e os trouxe até a altura dos olhos. Perguntou, depois:

– Bom, vocês de novo. Como foram as coisas? E o bichinho:

– Muito bem, não poderia ter sido melhor. Você sonhou a coisa certa na hora certa.

– Ou seja?

– Apareceram uns Por Quinhos iguais a nós, igual­mente rosados, tenros, doces e indefesos, com a única diferença que nós andamos com quatro patas e eles com duas; e nos levaram para longe dos detestáveis Ja Valis, para um lugar magnífico, em que não falta nada, abso­lutamente nada, para ser felizes.

– E como é esse lugar? – perguntou mãe Na Tureza com curiosidade.

– São instalações de um andar só, com várias divisões e em cada uma dá para alojar uma família inteira. Os Por Quinhos de duas patas providenciam para que não nos falte nada. Assim, em horários regulares, nos servem uma refeição excelente, composta de sêmola, farelo, bagas e uma deliciosa lavagem cheia de maçãs podres e batatas estragadas. E ainda nos lavam a todos, pra valer, com mangueiras.

– Enfim, nos tratam bem: tudo é limpo, espelhado, cintilante. Imagine que para não cairmos nos degraus, quando saímos do barracão para passearão ar livre, cons­truíram até uma rampa na qual os nossos cascos não es­corregam.

Mãe Na Tureza comentou satisfeita:

– Muito bem, muito bem, parece que desta vez so­nhei os animais mais racionais dentre todos os que pus no mundo. Agora, meus filhos, estou com sono e dese­jo tirar uma soneca. Mas quero que me mantenham in­formada. Voltem, digamos, dentro de um milhar de anos. Boa noite.

Passaram-se mil anos. Mãe Na Tureza despertou, es­ticou-se e, sem mais nem menos, encontrou-se cara a cara com o Por Quinho de sempre, que logo berrou como um louco:

– Mamãe, traição, traição!

– Como assim?

– Aqueles seres que chamamos de Por Quinhos com duas patas são uns monstros, autênticos monstros. Tra­tam-nos bem, nos mantêm limpos e bem nutridos, nos engordam: mas sabe para quê?

– Não, para quê?

Para nos comer. Num determinado momento, quando estamos gordos no ponto ideal, pronto, nos amar­ram pelos pés numa espécie de corrente que desliza. A corrente desliza com um barulho terrível e eles, pouco a pouco, nos degolam, tiram nosso sangue, nos esquartejam, nos fazem em pedaços. Não me detenho sobre o modo pelo qual esses pedaços são depois preparados; basta dizer que somos transformados em vários produ­tos que eles, ao que parece, chamam de lingüiças, presuntos, pernis, salames e assim por diante, segundo a parte de nosso corpo que foi usada: horror, horror, hor­ror. E você nos havia prometido que sonharia o animal mais dotado de razão dentre todos. Ai de nós, ele usa a razão para nos devorar! E ainda por cima para devorar-nos com a nossa própria colaboração! Ai de nós, mamãe, você também nos traiu!

Agora, alguém há de querer saber o que respondeu mãe Na Tureza a essa calorosa e desesperada crítica. Ninguém vai acreditar: não respondeu nada. Pegou o Por Quinho entre dois dedos, depositou-o com delicadeza no chão, virou-se de lado e adormeceu de novo.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O FILHO DO VAMPIRO

(CORTÁZAR, Julio. “O Filho do Vampiro”. Bestiário, Revista de Contos. Rio de Janeiro, 2006 disponível em acesso em 3 de maio de 2008)

Provavelmente todos os fantasmas sabiam que Duggu Van era um vampiro. Não o temiam, mas deixavam o caminho livre quando ele saia de sua tumba precisamente à meia-noite e entrava no antigo castelo à procura de seu alimento favorito.

O rosto de Duggu Van não era agradável, a quantidade de sangue ingerido desde sua suposta morte – no ano de 1060, pelas mãos de um menino, novo David armado de uma atiradeira-punhal – havia infiltrado em sua pele opaca a coloração mole das madeiras que ficam por muito tempo debaixo d’água. A única vida naquele rosto eram seus olhos. Olhos fixos na figura de Lady Vanda, adormecida como um bebê na cama que não conhecia mais que seu corpo leve.

Duggu Van caminhava sem fazer ruído, a mescla de vida e morte que formava seu coração se resolvia em qualidades inumanas. Vestido de azul escuro, acompanhado sempre por um silencioso séqüito de perfumes rançosos, o vampiro passeava pelas galerias do castelo buscando depósitos vivos de sangue. A indústria frigorífica o houvera indignado. Lady Vanda, adormecida com a mão sobre os olhos como em premonição do perigo, parecia um bibelô, um terreno propício ou uma cariátide.

Louvável costume de Duggu Van era o de nunca pensar antes da ação. Parado diante da cama, desnudando com a levíssima mão carcomida o corpo da rítmica escultura, a sede de sangue começou a ceder.

Se os vampiros de apaixonam é coisa que na estória permanece oculta. Se houvesse meditado, a condição tradicional haveria detido talvez à beira do amor, limitando-o ao sangue higiênico e vital, porém Lady Vanda não seria para ele uma mera vítima, destinada a uma série de coleções, a beleza irrompia de sua figura ausente lutando, exatamente no meio do espaço que separava ambos os corpos, com a fome.

Sem tempo para perplexidades, ingressou Duggu Van com voracidade estrepitosa no amor, o atroz despertar de Lady Vanda atrasando em um segundo as suas possibilidades de defesa e o falso sonho do desmaio houve de entregá-la, branca luz na noite, ao amante.

Fato é que, de madrugada e antes de ir embora, o vampiro não pode com sua vocação e fez uma pequena sangria no ombro da desvanecida castelhana. Mais tarde, ao pensar naquilo, Duggu Van sustentou para si que as sangrias resultavam muito recomendáveis para os desmaiados. Como em todos os seres, seu pensamento era menos nobre que o simples ato.

No castelo houve congresso de médicos, perícias pouco agradáveis, sessões conjuratórias e anátemas, e, além do mais uma enfermeira inglesa que se chamava Miss Wilkinson e que bebia genebra com uma naturalidade emocionante. Lady Vanda esteve longo tempo entre a vida e a morte (sic). A hipótese de um pesadelo demasiado verdadeiro foi abatida frente a determinadas comprovações oculares; e, além do mais, quando transcorreu um lapso razoável, a dama teve a certeza de que estava grávida.

Portas fechadas com Yale haviam detido as tentativas de Duggu Van. O vampiro tinha que alimentar-se de crianças, de ovelhas, até de – horror! – porcos, mas todo o sangue lhe parecia água ao lado daquele de Lady Vanda. Uma simples associação, da qual não o livrara seu caráter de vampiro, exaltava em sua lembrança o gosto de sangue onde havia nadado, guloso, o peixe de sua língua. Inflexível sua tumba na passagem diurna, era preciso aguardar o canto do galo para pular, desfigurado, louco de fome.

Não havia voltado a ver Lady Vanda, mas seus passos o levavam uma e outra vez à galeria terminada na redonda burla amarela de Yale. Duggu Van estava sensivelmente pior.

Pensava às vezes – horizontal e úmido em seu ninho de pedra – que talvez Lady Vanda teria um filho seu, o amor recrudescia então mais que a fome. Sonhava sua febre com violações de trincos, seqüestros, a construção de uma nova tumba matrimonial de ampla capacidade. O paludismo se escondia nele agora.

O filho crescia, quieto, em Lady Vanda. Uma tarde ouviu Miss Wilkinson gritar para sua senhora. A encontrou pálida, desolada, tocava o ventre coberto ao relento, e dizia:

- É tal qual o pai, é tal qual o pai.

Duggu Van, a ponto de morrer a morte dos vampiros (coisa que por razões compreensíveis o aterrorizava), tinha ainda a débil esperança de que seu filho, acaso possuidor de suas mesmas qualidades de sagacidade e destreza, maquinaria algo para trazer-lhe sua mãe algum dia. Lady Vanda ficava cada dia mais pálida e aérea. Os médicos maldiziam, os tônicos recuavam. E ela, repetindo sempre:

- É tal qual o pai, tal qual o pai.

Miss Wilkinson chegou à conclusão de que o pequeno vampiro sangrava a mãe com a mais refinada das crueldades. Quando os médicos se inteiraram da situação, falou-se de um abordo, plenamente justificável; porém Lady Vanda se negou, virando a cabeça como um ursinho de pelúcia, acariciando com a direita seu ventre ao relento.

- É tal qual o pai – disse-. Tal qual o pai.

O filho de Duggu Van crescia rapidamente. Não apenas ocupava a cavidade que a natureza lhe concedera, mas invadia o resto do corpo de Lady Vanda, que agora podia apenas falar, já não lhe restara sangue; e se havia algum, estava no corpo de seu filho. E quando veio o dia estabelecido para o alumbramento, os médicos disseram que aquele ia ser um parto estranho. Em número de quatro rodearam o leito da parturiente, aguardando que chegasse a meia-noite do trigésimo dia do nono mês do atentado de Duggu Van.

Na galeria, Miss Wilkinson viu aproximar-se uma sombra. Não gritou porque sabia que não ganharia nada com isso, o rosto de Duggu Van não era de provocar risos, a cor terrosa de seu rosto havia se transformando em um relevo uniforme e cardão, em vez de olhos, duas grandes interrogações lacrimejantes se balanceavam sob o cabelo endurecido.

- É absolutamente meu – disse o vampiro com a linguagem caprichosa de sua seita – e ninguém pode interpolar-se entre sua essência e meu carinho. Falava do filho; Miss Wilkinson acalmou-se.

Reunidos em um ângulo do leito, os médicos tratavam de demonstrar uns aos outros que não tinham medo. Passavam a admitir mudanças no corpo de Lady Vanda, sua pele repentinamente escura, as pernas que se enchiam de relevos musculares, o ventre que se achatava suavemente e, com uma naturalidade que parecia quase familiar, o sexo que se transformava no contrário, as mãos que não eram mais as de Lady Vanda. Os médicos sentiam um medo atroz.

Então, quando soaram as doze, o corpo que havia sido Lady Vanda e era agora seu filho se aprumou docemente no leito e estendeu os braços até a porta aberta. Duggu Van entrou no salão, passou frente os médicos sem vê-los e tocou as mãos de seu filho.

Os dois, olhando-se como se se conhecessem desde sempre, saíram pela janela, a cama ligeiramente desarrumada, os médicos balbuciando coisas em torno dela, contemplando sobre as mesas os instrumentos do ofício, a balança para pesar o recém nascido e Miss Wilkinson na porta retorcendo-se as mãos e perguntando, perguntando, perguntando.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A ARMADILHA

(RUBIÃO, Murilo. Para Gostar de Ler – Vol.9 – Contos. São Paulo: Editora Ática, 1984)

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.

Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.

Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.

Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.

Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:

— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.

O outro teve que insistir:

— Afinal, você veio.

Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:

— Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.

— Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.

— Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?

— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.

Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.

Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:

— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.

— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.

— Nada?

Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que viam no rosto do outro venceram-no.

— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!

Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:

— Calculava, porém desejava ter certeza.

Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.

O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.

Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:

— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.

— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.

— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!

— Não posso.

— Não pode ou não quer?

— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.

Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.

Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.

Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:

— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.

A fúria de Alexandre chegara ao auge:

— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!

— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.

— Gritarei, berrarei!

— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.

E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:

— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

LARANJA MECÂNICA

BURGESS, Anthony. Laranja mecânica. Tradução de Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2004)

Na manhã seguinte acordei às ó-oito-ó-ó-horas, meus ir­mãos, e como ainda me sentia surrado, esmurrado, esgotado e travado, e meus glazis estavam colados horrorshow mesmo com cola-do-sono, decidi que não iria à escola. Pensei em fi­car um malenk mais na cama, uma hora ou duas, digamos, e então me vestir bem bonito, talvez até mesmo fazer splish splash na banheira, preparar uma torrada pra mim e sluchar o rádio ou ler a gazeta, tudo odinoki. E depois, no pós-almoço, se eu ainda quisesse, itiar até a velha escolacola e ver o que estava varetando naquele grande trono do aprendizado glupi inútil, Ó, meus irmãos. Ouvi meu papapa resmungan­do, tropeçando e depois itiando até as tinturarias onde robotava, e em seguida minha mãe me chamou com uma goloz muito respeitável como ela costumava fazer agora que eu es­tava crescendo grande e forte:

Já são oito horas, filho. Não vai querer se atrasar de novo.

Então gritei de volta:

– Estou com um pouco de dor de gúliver. Deixai-nos em paz e vou tentar dormir pra passar e depois vou ficar bem para isso mais tarde. – Sluchei-a dar uma espécie de suspiro e ela disse:

Então vou colocar seu café no fogão, filho. Preciso ir agora. – O que era verdade, porque havia aquela lei que todo mundo que não fosse criança ou não tivesse filhos ou não es­tivesse doente tinha que sair para robotar. Minha mama tra­balhava em um dos Supermerstatais, como eles os chamavam, preenchendo as prateleiras com latas de sopa e feijão e aque­la coisa toda. Então eu sluchei o tilintar de um prato tipo assim no fogão a gás e depois ela colocando os sapatos e depois tirando o casaco de trás da porta e depois suspirando de novo, então ela disse: – Estou indo agora, filho. – Mas eu me deixei voltar à sonolândia e cochilei horrorshow mesmo, e eu tive um sniti estranho e muito real, sonhando por alguma razão com meu drugui Georgie. Nesse sniti ele estava muito mais velho, muito esperto e severo, e estava govoretando sobre dis­ciplina e obediência e como todos os maltchiks sob seu con­trole tinham que pular miudinho e bater a velha continência como se estivessem no exército, e eu estava na fileira como o resto dizendo sim senhor e não senhor, e então eu videei cla­ramente que o Georgie tinha estrelas nos pletchos e era as­sim tipo um general. E então ele trouxe o bom e velho Tosko com um chicote, e o Tosko estava muito mais starre e grisa­lho e tinha uns zubis faltando como se podia ver quando ele soltava um smek, me videando, e então meu drugui Georgie disse, apontando para mim assim: – Esse homem tem sujeira e kal nas platis todas – e era verdade. Então eu krikei: – Não me batam, por favor, irmãos – e comecei a correr. E eu estava correndo assim, em círculos, e o Tosko atrás de mim, smekando até cair a gúliver, estalando o velho chicote, e cada vez que eu recebia um toltchok verdadeiramente horrorshow com esse chicote parecia que tinha uma campainha elétrica muito alta trimtrimtrim, e essa campainha era uma espécie de dor também.

Então acordei skorre mesmo, meu coração fazendo tump tump tump, e claro que tinha realmente uma campainha to­cando trrrriiimmm, e era a campainha da nossa porta da frente. Eu disse que não tinha ninguém em casa, mas aquele trrriimm continuou, e então ouvi uma goloz gritando pela porta: – Va­mos lá, saia, eu sei que você está na cama. – Reconheci de cara a goloz. Era a goloz de P. R. Deltoid (um naz muito glupi, aquele cara), que chamavam de meu Conselheiro Pós-Correcional, um vek com excesso de trabalho e centenas de sujei­tos na sua contabilidade. Eu gritei ok ok ok, com uma goloz tipo assim de dor, e saí da cama e me trajei, Ó, meus irmãos, com um camisolão muito bonito tipo assim de seda, com de­senhos de grandes cidades em cima dele todo. Então meti meus nogas em tuflis muito confortáveis, penteei minha bas­ta cabeleira e estava prontinho para P. R. Deltoid. Quando abri, ele entrou cambaleando, com cara de lambido, um shlapa velho e amassado na gúliver, a capa de chuva imunda. – Ah, Alex, meu garoto – ele disse para mim. – Encontrei sua mãe. Ela disse alguma coisa sobre uma dor em algum lugar. Por isso não está na escola, sim?

– Uma dor um tanto intolerável na cabeça, irmão, senhor – eu disse com minha goloz de cavalheiro. – Acho que deve passar à tarde.

– Ou certamente à noite, sim? – disse P. R. Deltoid. – A noite é o grande momento, não é, Alex, meu garoto? Sente – ele disse. – Sente, sente – como se aquela fosse a domi dele e o convidado fosse eu. E ele se sentou naquela cadeira de ba­lanço starre do meu pai e começou a balançar, como se isso fosse tudo o que ele veio ali fazer. Eu perguntei:

– Uma xícara do velho tchai, senhor? Chá, quero dizer.

_ Não tenho tempo – disse ele. E ficou balançando, dan­do-me o velho brilho do olhar sob sobrancelhas franzidas, como se tivesse todo o tempo do mundo. – Não tenho tempo, sim? – ele disse, glupi. Então coloquei a chaleira no fogo. Aí eu disse:

– A que devo o extremo prazer? Há algo de errado, se­nhor?

– Errado? – perguntou ele, muito skorre e desconfiado, meio que curvado, olhando para mim mas ainda balançando.

Então ele avistou um anúncio na gazeta que estava sobre a mesa: uma linda ptitsa sorridente com os grudis balançando para anunciar, meus irmãos, as Glórias das Praias Iugoslavas. Então, depois de tipo assim comê-la com os olhos, ele per­guntou: – Por que você deveria pensar que há algo de erra­do? Você tem feito coisas que não deveria?

–É só modo de dizer – disse eu. – Senhor.

– Bem – disse P. R. Deltoid –, é só modo de dizer o que eu te digo agora. Tome cuidado, jovem Alex, porque da próxima vez, como você sabe muito bem, não vai mais ser a escola correcional. Da próxima, vai ser o xilindró, e todo o meu tra­balho estará arruinado. Se você não tem consideração pelo seu horrível eu, pelo menos poderia ter um pouco por mim, que suou a camisa por você. Uma grande mancha negra, isso eu lhe digo entre nós, para cada um que não recuperamos, uma confissão de fracasso para cada um de vocês que acaba no xadrez.

– Eu não tenho feito nada que não devesse, senhor – disse eu. – Os miliquinhas não têm nada contra mim, irmão, quero dizer, senhor.

– Corte esse papo espertinho sobre miliquinhas – disse P. R. Deltoid muito cansado, mas ainda balançando. – Só porque a polícia não pegou você ultimamente não quer dizer, como você bem sabe, que não tenha feito alguma malandragem. Houve uma briga ontem à noite, não houve? Uma confusão com nojas, correntes de bicicleta e coisas assim. Um dos amigos de um certo gorducho foi levado de ambulância bem tarde, perto da Usina de Força, e hospitalizado, cortado de forma horrível, foi mesmo. Seu nome foi citado. A notícia chegou até mim pelos canais de costume. Certos amigos seus também foram mencionados. Parece ter havido uma boa quantidade de malvadezas sortidas noite passada. Ah, ninguém pode provar nada sobre ninguém, como sempre. Mas estou avisando você, jovem Alex, estou sendo um bom amigo como sempre fui, o único homem nesta comunidade doente e maltratada que quer salvar você de si mesmo.

– Eu aprecio muito tudo isso, senhor – eu disse. – Com muita sinceridade.

– Ah, sim, aprecia, não é? - ele meio que debochou. – Fi­que esperto, é isso. Sabemos mais do que você pensa, jovem Alex. – Então ele disse, com uma goloz de grande sofrimento, mas ainda balançando: – O que é que dá em vocês todos? Nós estudamos o problema e já estamos estudando há quase um século, sim, mas os estudos não estão nos levando muito lon­ge. Você tem uma bela casa aqui, bons pais que te amam, você não tem um cérebro lá tão ruim. É algum diabo que entra dentro de você?

– Dentro de mim não entra nada não senhor – disse eu.

– Tenho estado fora das rukas dos miliquinhas já faz muito tempo.

– E justamente isso que me preocupa – suspirou P. R. Deltoid. – Um tempo um pouco longo demais para ser saudá­vel. Pelos meus cálculos, você está quase lá agora. É por isso que estou avisando você, jovem Alex, para manter sua probóscide jovem e bonita fora da sujeira, sim? Estou sendo claro?

– Como um lago sem lama, senhor – disse eu. – Claro como um céu cerúleo do mais profundo verão. Pode confiar em mim, senhor. – E lhe dei um belo sorriso zubi.

domingo, 8 de junho de 2008

A MORTA

(MAUPASSANT, Guy de. Contos Fantásticos. Porto Alegre: LP&M Editores, 1997)

Eu a amara perdidamente. Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um único desejo e na boca um único nome; um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tempo todo, por toda parte, como uma prece.

Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer.

E depois ela morreu. Como? Não sei, não sei mais.

Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama.

O que aconteceu? Não sei mais.

Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira exclamou: "Ah! Compreendi, compreendi!"

Não soube de mais nada. Nada. Vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Vi outro que foi muito bondoso, muito terno. Chorei quando me falou dela.

Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! Meu Deus!

Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele buraco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Caminhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem.

Ontem, regressei a Paris.

Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu.

E parei, de chofre, diante desse espelho que tantas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem.

Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! Recordação! Recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem querer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu."

Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que horror! Eu soluçava, a fronte no chão.

Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me veriam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levantei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies.

E para todas as gerações dos mortos, para a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os paga. Adeus!

Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as próprias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão colocados os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana.

Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente entre os galhos grossos e escuros.

E esperei, agarrado ao tronco como um náufrago aos destroços.

Quando a noite ficou escura, bem escura, deixei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos.

Vaguei durante muito, muito tempo. Não a encontrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarrando nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joelhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que procura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas!! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava!

Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta!

Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava paralisado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, prestes a morrer.

E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de deixar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empurrava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor." O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, contemplando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras luminosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo:

"Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Apressou com maus-tratos a morte do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pôde e morreu miseravelmente."

Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade.

E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham roubado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, esses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis.

Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignorava ou finge ignorar nesta Terra.

Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora, já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáveres, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria.

Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário.

E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera: "Ela amou, foi amada, e morreu", divisei:

"Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu"

Parece que me encontraram inanimado, ao nascer do dia, junto a uma sepultura.

terça-feira, 3 de junho de 2008

AMÉRICA

SCHNITZLER, Arthur. Original retirado da página do Projekt Gutenberg . Tradução de Guilherme da Silva Braga.

O navio aporta; ponho os pés no Novo Mundo...

A manhã cinza de outono encobre o mar e a terra; o mundo balança sob os meus pés; ainda sinto o movimento incansável das ondas... A cidade se ergue em meio à neblina... Ao meu lado, de olhos bem abertos, a multidão irrequieta se apressa. Eles não têm a impressão do estrangeiro; apenas da novidade. Escuto enquanto aqui e acolá alguém sussurra: “América” – como se quisesse convencer-se de que agora estamos mesmo aqui, tão longe!...

Estou sozinho na orla. Não é nesta nova América que eu penso, onde ainda tenho de exigir a felicidade que a pátria ficou me devendo – é numa outra.

Vejo o pequeno quartinho, vejo-o com tanta clareza que é como se eu tivesse saído de lá ontem, e não há muitos e muito anos. Sobre a mesa, o abajur verde; no canto, a poltrona bordada. Na parede estão penduradas gravuras; as imagens nadam na penumbra. Anna está comigo. Ela está aos meus pés, com os cachos apoiados no meu joelho; preciso me inclinar para ver seus olhos.

Nós paramos de conversar; a noite se adensa e a salinha está envolta em silêncio. Lá fora começa a chover; escutamos as gotas batendo na vidraça, lentas, pesadas. Anna sorri, e eu me inclino até seus lábios. Beijo-lhe a boca, a testa e os olhos, que ela fechou. Meus dedos brincam nos delicados fios dourados que se enroscam atrás de suas orelhas. Eu os afasto e beijo a pele doce e alva que ali se esconde. Anna abre os olhos e ri.

– Um lugar novo – cochicha ela, como estivesse surpresa.

Mantenho os lábios colados atrás de sua orelha. Então digo, com um sorriso:

– É, descobri um lugar novo!

Ela ri e diz, com um jeito de criança alegre:

– América!

Como aquilo foi engraçado! Que loucura, que bobagem! Vejo seu rosto diante de mim, lembro do olhar travesso de Anna quando seus lábios rubros gritaram:

– América!

Como nós rimos, e como me embriaguei no perfume que recendia daqueles cachos por sobre a nossa América...

E esse nome grandioso perdurou. De início nós sempre ríamos quando, em meio a beijos incontáveis, um deles pousava-lhe atrás da orelha; depois cochichávamos – logo não fazíamos mais do que pensar; mas aquilo nunca passava despercebido.

Ocorrem-me várias lembranças. Certa vez vimos um anúncio com um navio enorme e, ao chegar mais perto, lemos: “De Liverpool – a Nova York – de Bremen – a Nova York”... Começamos a rir em plena rua, e ela declarou em voz alta, mesmo com toda a gente ao redor:

– Escute, ainda hoje nós vamos para a América!

As pessoas olharam para ela meio surpresas; em especial um jovem de bigode loiro, que deu uma risada. Fiquei irritado e pensei: Ah, esse aí queria ir junto...

Em outra ocasião estávamos no teatro; não me lembro o que assistíamos, mas no palco alguém falava de Colombo. A peça era escrita em iambos, e agora acodem-me os versos: “– e então Colombo a ponte atravessou...”. Anna deu-me um leve cutucão no braço; olhei para ela e logo entendi seu olhar desdenhoso. Pobre Colombo... como se ele houvesse descoberto a verdadeira América! Terminada a apresentação, fomos tomar vinho em uma adega, onde falamos um bocado sobre aquele bom homem que tanto se gabara de sua pobre América. Na verdade, sentíamos pena dele. Por muito tempo fui incapaz de imaginá-lo senão como um homem de olhar triste, em pé na costa do Novo Mundo, usando uma improvável cartola e um sobretudo moderno, desiludido, balançando a cabeça. Uma vez nós dois desenhamos Colombo em uma mesa de mármore no café, acrescentando vários detalhes. Anna decidiu que ele deveria estar fumando um charuto; ademais, o grande explorador também carregava, nesse desenho, um guarda-chuva, e sua cartola estava amassada – é claro – por causa dos amotinados. E assim Colombo tornou-se, para nós, a figura humorística por excelência da história universal. Que loucura! Que bobagem!...

Agora estou no meio da cidade grande e fria. Estou na América falsa e sonho com a doçura e o perfume da minha América distante... Faz tanto tempo! Muitos, muitos anos. Uma dor, uma loucura toma conta de mim por eu ter perdido algo irrecuperável... Por eu não saber sequer para onde mandar notícias nem onde uma carta minha pudesse encontrá-la – por já não saber mais nada, absolutamente nada a respeito dela...

Meu caminho avança cidade adentro, e o carregador me segue. Detenho-me por um instante, fecho os olhos e, graças a uma ilusão fugaz dos sentidos, uma nuvem de perfume me envolve; o mesmo perfume que naquela noite soprou dos cachos de Anna, quando descobrimos a América...

quinta-feira, 29 de maio de 2008

O OVO COM SOLENIDADE:

(GOMES, Duílio. “O Ovo com Solenidade”. IN: Os Melhores Contos Fantásticos. Org. COSTA, Flávio Moreira da. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006. p.693-95)

O cego estava quebrando o ovo para fazer omelete quando o porco entrou na cozinha. Sentiu-o aos seus pés; em silêncio, cheirava os seus pés. O cego estava de sandálias e a saliva do porco era uma coisa quente e líquida molhando o seu calcanhar direito. Os músculos do cego se retesaram. Sua mulher e sua filha haviam saído. Elas sabiam do grande medo que ele tinha de porcos e por isso os trancavam no chiqueiro. O cego percebeu, dentro da névoa do seu medo, que eles haviam arrebentado as tábuas podres do chiqueiro e saído. A mulher já o havia advertido: “As tábuas do chiqueiro estão podres. Precisamos trocá-las.” Eram três porcos gordos e espremidos no chiqueiro cujas tábuas iam apodrecendo debaixo das chuvas e dos carunchos. Viviam alucinados pelo calor, engordando e envelhecendo com as moscas que lhes trepavam nos lombos.

O cego estava sempre adiando a data de matá-los – esperava uma visita importante qualquer. Já não sabia há quanto tempo eles estavam em sua casa. Só sabia de sua aversão por eles e de uma iminente visita importante, quando então os mataria. Havia deixado a casca do ovo cair no chão e o porco agora a comia. Pelo menos enquanto ele come não se lembra de mim, pensou. Os velhos e agudos dentes, apesar de velhos, rasgariam a carne de suas pernas como se elas fossem manteiga. Tinha tanto medo do porco morder as suas pernas que elas não obedeciam ao seu intenso desejo de correr, e permaneciam fincadas no chão, expostas aos agudos dentes velhos do porco que agora, pelo silêncio, o cego sabia ter terminado de comer a casca do ovo e começava a cheirar o ar com seu largo, sujo e enrugado focinho de porco velho. As tábuas da escada que dava do quintal para a cozinha rangeram. Estão subindo outros, pensou o cego e o seu terror nesse momento foi tão intenso que ele sentiu, no escuro poço de sua vertigem, as pernas bambearem. Não posso cair, murmurou, não posso cair. Como um soco em sua memória, o aviso da mulher: só chegaremos à noite. Haviam saído, ela e a filha, para visitar uma parenta doente e o cego se rendeu, subitamente, à dolorosa realidade – ter de permanecer durante longo tempo como um monumento lívido e frágil em meio aos porcos. Eles agora rodeavam as suas pernas, grunhindo. Misturado aos seus roncos, que ecoavam na cozinha como a nota mais grave de um instrumento de sopro, o cheiro enjoativo do ovo sobre o prato. O cego lembrou-se, com uma ponta de desespero, da omelete que nunca comeria e então fez o gesto que talvez o salvasse da fome e do ódio dos seus porcos: com as mãos trêmulas derramou o ovo no chão. Foi um gesto mecânico tateante mas que inaugurou nele uma certa paz – os porcos lambiam o ovo no chão e isso era a trégua; enquanto eles se alimentavam não se lembrariam de suas pernas. Sua mulher tinha o costume de deixar os mantimentos sobre a pia, na frente da qual se encontrava, e ele tentava agora localizá-los. Sabia que a menina havia feito a feira naquela manhã e que enquanto entregava os mantimentos para a mãe, ia nomeando-os. Estava tudo na sua frente, além do vácuo negro dos seus olhos. Precisava detectar os mantimentos e com eles saciar a dura fome dos porcos. Apalpando a superfície úmida da pia, seus dedos tocaram num objeto morno. Era um objeto morno e redondo, com uma haste encimando-o. Abóbora, pensou, e puxou-a pela haste. O ruído seco da abóbora caindo no chão foi o ruído de uma abóbora que se partia e que se ofertava, amarela e luminosa, à avidez dos porcos. O ruído que se seguiu ao da abóbora se partindo foi o ruído dos porcos mastigando. Mastigavam com pressa e grunhiam. Havia satisfação nos seus grunhidos. O cego, então, com uma escura dificuldade, foi localizando e atirando ao chão o arroz, os quiabos, a couve, até que, não encontrando mais nada para atirar, escutou: a bolha de saliva arrebentando. Pelo denso silêncio que subia do chão ele entendeu que a bolha de saliva fora o final do festim. Entendeu também, com a profunda e mágica percepção dos cegos, que os porcos ainda não estavam saciados. E que o rodeavam, pensativos, os olhos fixos em suas pernas.

UM FRATRICÍDIO

(KAFKA, Franz. “Um Fratricídio” IN: Os 100 melhores contos de crime e mistério da Literatura Universal. Org. COSTA, Flávio Moreira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p.190-1)

As evidências mostram que o crime foi cometido da seguinte maneira:

Schmar, o assassino, tomou seu lugar perto das nove horas de uma noite de luar na esquina onde Wese, sua vítima, ia virar da rua onde ficava seu escritório para a rua onde ele vivia.

O ar da noite espalhava o frio. Mesmo assim, Schmar vestia apenas uma roupa azul leve; a jaqueta estava desabotoada, ainda por cima. Ele não sentia frio; além disso, ele se movimentava o tempo todo. Sua arma, metade uma baioneta e metade uma faca de cozinha, restava firme na sua mão, quase nua. Ele olhou para a faca contra a luz da lua. A lâmina brilhou; não tanto para Schmar; ele pressionou-a contra o tijolo da parede e as faíscas brilharam; talvez tenha se arrependido disso; e para remendar seu gesto deslizou-a como um arco de violino contra a sola da bota, inclinando-se para frente, ficando numa perna só, e ouviu tanto o afiar da faca na sua bota quanto qualquer ruído vindo daquele lado da rua.

Por que Pallas, o cidadão que estava olhando tudo pela janela próxima do segundo andar, permitiu que aquilo acontecesse? Enigmáticos são os mistérios do ser humano! Com seu colarinho fora de lugar, o cinto da camisola em volta do seu corpo arredondado, ficou olhando para baixo, balançando a cabeça.

E cinco casas além dali, no lado oposto da rua, a Sra.Wese, com um casaco de pele de raposa por sobre a roupa de dormir, espichou o pescoço para ver se seu marido chegava, pois ele estava atrasado naquela noite.

Finalmente soou o apito no escritório de Wese, alto demais para um apito, sobre a cidade e nos céus, e Wese, o dedicado trabalhador noturno, saiu do prédio, invisível ainda naquela rua, apenas anunciado pelo som do apito; de repente o andar registrou seus passos tranqüilos.

Pallas debruço-se mais para fora; ele nem pensava em perder um movimento. A Sra.Wese, animada pelo apito, fechou sua janela com um estrondo. Mas Schmar se ajoelhou; por ter todo o resto do corpo coberto, pressionou apenas seu rosto e suas mãos contra a parede; enquanto tudo o mais ficava gelado, Schmar se acendia de calor.

Bem na esquina que dividia as duas ruas, Wese fazia uma pausa, apenas sua bengala parecia vir da outra rua, apoiando-o. um frêmito súbito. O céu da noite convidava-o, com sua escuridão azul e dourada. Sem saber, ele fixou os olhos no céu, sem querer, levantou o chapéu e mexeu nos cabelos; nada lá em cima uniu-se em algum lugar padrão de sinalização que interpretasse o futuro para ele; tudo permanecia no seu lugar inescrutável e sem sentido. Em si mesmo, era uma ação razoável que Wese continuasse caminhando em direção à faca de Schmar.

“Wese!”, gritou Schmar, ficando na ponta dos pés, seu braço se mexendo, a faca rispidamente abaixada, “Wese! Você nunca mais vai ver Júlia!” E o braço direito na garganta e outra vez na garganta e uma terceira vez enfiando na barriga a faca de Schmar fez sua trajetória. Liquido jorrou, ferida aberta, originando o som emitido por Wese.

“Feito”, disse Schmar, e esfregou a faca, agora uma lâmina supérflua e pingando sangue, contra a parede mais próxima. “A felicidade do assassinato! O alívio, o êxtase que cresce do jorro do sangue alheio! Wese, velho pássaro noturno, amigo, colega de botequim, você está se desvanecendo no escuro do chão desta rua. Por que não é você apenas uma poça de sangue de modo que eu poderia pisar em você e fazer com que você desaparecesse no vazio? Nem tudo que queremos se transforma em realidade, nem todos os sonhos que florescem se transformam em frutos, sua solidez paira aqui já indiferente a um simples chute. Qual o sentido da tola pergunta que você me faz?”

Pallas, chocado, abriu a porta dupla de sua casa e ali ficou à espera. “Schmar! Schmar! Eu vi tudo, não perdi nada.” Pallas e Schmar se examinaram mutuamente com os olhos. O resultado da sondagem deixou Pallas satisfeito e Schmar não chegou a nenhuma conclusão.

A Sra.Wese, com um bando de gente à sua volta, apareceu correndo, seu rosto envelheceu consideravelmente com o choque. Seu casaco de pele aberto balançava, ela desmaiou em cima de Wese, o corpo jogado na noite que pertencia a Wese, o casaco de pele espalhado por cima do casal como as macias flores de uma tumba que pertence à multidão.

Schmar, lutando com dificuldade contra sua própria náusea, pressionou a boca contra o ombro do agente de polícia que, se desviando levemente dele, deixou-o escapar.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O VINGADOR

In: TCHEKOV, Anton. O livro de bôlso dos contos humorísticos. Sem menção ao tradutor. Rio de Janeiro: Edições de ouro, 1966.

Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia., a escolher o revólver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.

“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei”.

Não havia ainda escolhido o revólver e nem sequer assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.

Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.

O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:

– Eu aconselharia a Monsieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Monsieur para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e o amante. Quanto aos suicidas, Monsieur, não conheço, para eles, melhor sistema.

E o empregado, apertando e soltando o gatilho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.

– E qual o preço? – perguntou Sigaev.

– Quarenta e cinco rublos, Monsieur.

– Hum! É muito caro, para mim.

– Neste caso, Monsieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo, do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... – o empregado fez um muxoxo de pouco caso – é um sistema, Monsieur, demasiadamente antiquado. Quem o compra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.

– Não necessito matar-me ou a alguém – mentiu, com acento sombrio, Sigaev. – Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.

– Não nos interessa o seu motivo –sorriu o empregado, baixando modestamente os olhos – Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja. Para espantar os corvos, Monsieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.

“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela cabeça de Sigaev. “Porém... não... Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros...”

O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.

“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixaria viver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!”

Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão indignada...

– Vejo, Monsieur, que lhe agrada o Smith & Wesson – comentou o empregado, interrompendo o devaneio – Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.

A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.

– Aqui está outro, Monsieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe, Monsieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas! Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a própria omoplata...

Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!

“E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem... O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade, toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....”

Um minuto depois, pensava:

“Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia. Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!...”

Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.

– Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Monsieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson. Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temos leis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Monsieur. Porque também o jurado, os juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de um marido a menos na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Monsieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados – e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou:

– E quem é o responsável, Monsieur? O Governo!

“Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele... Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei escandaloso processo de divórcio...”

– Aqui está, Monsieur, um sistema novo – comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. – Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão...

Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.

–Bem – balbuciou. – Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...

Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde, pendurada junto à porta.

– E isso? Que é isso? – perguntou.

– É uma rede para caçar codornas.

– Qual o preço?

– Oito rublos.

– Pois pode mandar embrulhar.

O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.