quinta-feira, 29 de maio de 2008

O OVO COM SOLENIDADE:

(GOMES, Duílio. “O Ovo com Solenidade”. IN: Os Melhores Contos Fantásticos. Org. COSTA, Flávio Moreira da. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006. p.693-95)

O cego estava quebrando o ovo para fazer omelete quando o porco entrou na cozinha. Sentiu-o aos seus pés; em silêncio, cheirava os seus pés. O cego estava de sandálias e a saliva do porco era uma coisa quente e líquida molhando o seu calcanhar direito. Os músculos do cego se retesaram. Sua mulher e sua filha haviam saído. Elas sabiam do grande medo que ele tinha de porcos e por isso os trancavam no chiqueiro. O cego percebeu, dentro da névoa do seu medo, que eles haviam arrebentado as tábuas podres do chiqueiro e saído. A mulher já o havia advertido: “As tábuas do chiqueiro estão podres. Precisamos trocá-las.” Eram três porcos gordos e espremidos no chiqueiro cujas tábuas iam apodrecendo debaixo das chuvas e dos carunchos. Viviam alucinados pelo calor, engordando e envelhecendo com as moscas que lhes trepavam nos lombos.

O cego estava sempre adiando a data de matá-los – esperava uma visita importante qualquer. Já não sabia há quanto tempo eles estavam em sua casa. Só sabia de sua aversão por eles e de uma iminente visita importante, quando então os mataria. Havia deixado a casca do ovo cair no chão e o porco agora a comia. Pelo menos enquanto ele come não se lembra de mim, pensou. Os velhos e agudos dentes, apesar de velhos, rasgariam a carne de suas pernas como se elas fossem manteiga. Tinha tanto medo do porco morder as suas pernas que elas não obedeciam ao seu intenso desejo de correr, e permaneciam fincadas no chão, expostas aos agudos dentes velhos do porco que agora, pelo silêncio, o cego sabia ter terminado de comer a casca do ovo e começava a cheirar o ar com seu largo, sujo e enrugado focinho de porco velho. As tábuas da escada que dava do quintal para a cozinha rangeram. Estão subindo outros, pensou o cego e o seu terror nesse momento foi tão intenso que ele sentiu, no escuro poço de sua vertigem, as pernas bambearem. Não posso cair, murmurou, não posso cair. Como um soco em sua memória, o aviso da mulher: só chegaremos à noite. Haviam saído, ela e a filha, para visitar uma parenta doente e o cego se rendeu, subitamente, à dolorosa realidade – ter de permanecer durante longo tempo como um monumento lívido e frágil em meio aos porcos. Eles agora rodeavam as suas pernas, grunhindo. Misturado aos seus roncos, que ecoavam na cozinha como a nota mais grave de um instrumento de sopro, o cheiro enjoativo do ovo sobre o prato. O cego lembrou-se, com uma ponta de desespero, da omelete que nunca comeria e então fez o gesto que talvez o salvasse da fome e do ódio dos seus porcos: com as mãos trêmulas derramou o ovo no chão. Foi um gesto mecânico tateante mas que inaugurou nele uma certa paz – os porcos lambiam o ovo no chão e isso era a trégua; enquanto eles se alimentavam não se lembrariam de suas pernas. Sua mulher tinha o costume de deixar os mantimentos sobre a pia, na frente da qual se encontrava, e ele tentava agora localizá-los. Sabia que a menina havia feito a feira naquela manhã e que enquanto entregava os mantimentos para a mãe, ia nomeando-os. Estava tudo na sua frente, além do vácuo negro dos seus olhos. Precisava detectar os mantimentos e com eles saciar a dura fome dos porcos. Apalpando a superfície úmida da pia, seus dedos tocaram num objeto morno. Era um objeto morno e redondo, com uma haste encimando-o. Abóbora, pensou, e puxou-a pela haste. O ruído seco da abóbora caindo no chão foi o ruído de uma abóbora que se partia e que se ofertava, amarela e luminosa, à avidez dos porcos. O ruído que se seguiu ao da abóbora se partindo foi o ruído dos porcos mastigando. Mastigavam com pressa e grunhiam. Havia satisfação nos seus grunhidos. O cego, então, com uma escura dificuldade, foi localizando e atirando ao chão o arroz, os quiabos, a couve, até que, não encontrando mais nada para atirar, escutou: a bolha de saliva arrebentando. Pelo denso silêncio que subia do chão ele entendeu que a bolha de saliva fora o final do festim. Entendeu também, com a profunda e mágica percepção dos cegos, que os porcos ainda não estavam saciados. E que o rodeavam, pensativos, os olhos fixos em suas pernas.

UM FRATRICÍDIO

(KAFKA, Franz. “Um Fratricídio” IN: Os 100 melhores contos de crime e mistério da Literatura Universal. Org. COSTA, Flávio Moreira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p.190-1)

As evidências mostram que o crime foi cometido da seguinte maneira:

Schmar, o assassino, tomou seu lugar perto das nove horas de uma noite de luar na esquina onde Wese, sua vítima, ia virar da rua onde ficava seu escritório para a rua onde ele vivia.

O ar da noite espalhava o frio. Mesmo assim, Schmar vestia apenas uma roupa azul leve; a jaqueta estava desabotoada, ainda por cima. Ele não sentia frio; além disso, ele se movimentava o tempo todo. Sua arma, metade uma baioneta e metade uma faca de cozinha, restava firme na sua mão, quase nua. Ele olhou para a faca contra a luz da lua. A lâmina brilhou; não tanto para Schmar; ele pressionou-a contra o tijolo da parede e as faíscas brilharam; talvez tenha se arrependido disso; e para remendar seu gesto deslizou-a como um arco de violino contra a sola da bota, inclinando-se para frente, ficando numa perna só, e ouviu tanto o afiar da faca na sua bota quanto qualquer ruído vindo daquele lado da rua.

Por que Pallas, o cidadão que estava olhando tudo pela janela próxima do segundo andar, permitiu que aquilo acontecesse? Enigmáticos são os mistérios do ser humano! Com seu colarinho fora de lugar, o cinto da camisola em volta do seu corpo arredondado, ficou olhando para baixo, balançando a cabeça.

E cinco casas além dali, no lado oposto da rua, a Sra.Wese, com um casaco de pele de raposa por sobre a roupa de dormir, espichou o pescoço para ver se seu marido chegava, pois ele estava atrasado naquela noite.

Finalmente soou o apito no escritório de Wese, alto demais para um apito, sobre a cidade e nos céus, e Wese, o dedicado trabalhador noturno, saiu do prédio, invisível ainda naquela rua, apenas anunciado pelo som do apito; de repente o andar registrou seus passos tranqüilos.

Pallas debruço-se mais para fora; ele nem pensava em perder um movimento. A Sra.Wese, animada pelo apito, fechou sua janela com um estrondo. Mas Schmar se ajoelhou; por ter todo o resto do corpo coberto, pressionou apenas seu rosto e suas mãos contra a parede; enquanto tudo o mais ficava gelado, Schmar se acendia de calor.

Bem na esquina que dividia as duas ruas, Wese fazia uma pausa, apenas sua bengala parecia vir da outra rua, apoiando-o. um frêmito súbito. O céu da noite convidava-o, com sua escuridão azul e dourada. Sem saber, ele fixou os olhos no céu, sem querer, levantou o chapéu e mexeu nos cabelos; nada lá em cima uniu-se em algum lugar padrão de sinalização que interpretasse o futuro para ele; tudo permanecia no seu lugar inescrutável e sem sentido. Em si mesmo, era uma ação razoável que Wese continuasse caminhando em direção à faca de Schmar.

“Wese!”, gritou Schmar, ficando na ponta dos pés, seu braço se mexendo, a faca rispidamente abaixada, “Wese! Você nunca mais vai ver Júlia!” E o braço direito na garganta e outra vez na garganta e uma terceira vez enfiando na barriga a faca de Schmar fez sua trajetória. Liquido jorrou, ferida aberta, originando o som emitido por Wese.

“Feito”, disse Schmar, e esfregou a faca, agora uma lâmina supérflua e pingando sangue, contra a parede mais próxima. “A felicidade do assassinato! O alívio, o êxtase que cresce do jorro do sangue alheio! Wese, velho pássaro noturno, amigo, colega de botequim, você está se desvanecendo no escuro do chão desta rua. Por que não é você apenas uma poça de sangue de modo que eu poderia pisar em você e fazer com que você desaparecesse no vazio? Nem tudo que queremos se transforma em realidade, nem todos os sonhos que florescem se transformam em frutos, sua solidez paira aqui já indiferente a um simples chute. Qual o sentido da tola pergunta que você me faz?”

Pallas, chocado, abriu a porta dupla de sua casa e ali ficou à espera. “Schmar! Schmar! Eu vi tudo, não perdi nada.” Pallas e Schmar se examinaram mutuamente com os olhos. O resultado da sondagem deixou Pallas satisfeito e Schmar não chegou a nenhuma conclusão.

A Sra.Wese, com um bando de gente à sua volta, apareceu correndo, seu rosto envelheceu consideravelmente com o choque. Seu casaco de pele aberto balançava, ela desmaiou em cima de Wese, o corpo jogado na noite que pertencia a Wese, o casaco de pele espalhado por cima do casal como as macias flores de uma tumba que pertence à multidão.

Schmar, lutando com dificuldade contra sua própria náusea, pressionou a boca contra o ombro do agente de polícia que, se desviando levemente dele, deixou-o escapar.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O VINGADOR

In: TCHEKOV, Anton. O livro de bôlso dos contos humorísticos. Sem menção ao tradutor. Rio de Janeiro: Edições de ouro, 1966.

Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia., a escolher o revólver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.

“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e como homem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante e finalmente suicidar-me-ei”.

Não havia ainda escolhido o revólver e nem sequer assassinara alguém, mas na imaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados, os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.

Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.

O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco, apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:

– Eu aconselharia a Monsieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith & Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-se dispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Monsieur para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemos diariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes. Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher e o amante. Quanto aos suicidas, Monsieur, não conheço, para eles, melhor sistema.

E o empregado, apertando e soltando o gatilho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seu rosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.

– E qual o preço? – perguntou Sigaev.

– Quarenta e cinco rublos, Monsieur.

– Hum! É muito caro, para mim.

– Neste caso, Monsieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo, do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... – o empregado fez um muxoxo de pouco caso – é um sistema, Monsieur, demasiadamente antiquado. Quem o compra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somente uma Smith & Wesson.

– Não necessito matar-me ou a alguém – mentiu, com acento sombrio, Sigaev. – Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.

– Não nos interessa o seu motivo –sorriu o empregado, baixando modestamente os olhos – Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja. Para espantar os corvos, Monsieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo. Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.

“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela cabeça de Sigaev. “Porém... não... Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros...”

O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir e de conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o de aspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedou ensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um pé convulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e o estupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.

“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixaria viver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tão nervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!”

Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com um sorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás do féretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores, lançados pela multidão indignada...

– Vejo, Monsieur, que lhe agrada o Smith & Wesson – comentou o empregado, interrompendo o devaneio – Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cinco rublos, embora tenhamos outros mais baratos.

A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.

– Aqui está outro, Monsieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que o câmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe, Monsieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e a tarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas! Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são uma desgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenas consegue atingir a própria omoplata...

Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade de ver e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!

“E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim. Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem... O que farei será matá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não me matarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, pois que ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade, toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....”

Um minuto depois, pensava:

“Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para que suicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia. Então, o que farei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurará como testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meu advogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão ao meu lado!...”

Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e considerava de seu dever, entreter o comprador.

– Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Monsieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson. Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith & Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido? A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou a esposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está preso agora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temos leis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Monsieur. Porque também o jurado, os juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e mais tranqüilos estão quando sabem de um marido a menos na Rússia. A sociedade se encantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah! Monsieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causa tanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significa que os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados – e o empregado, olhando em torno de si, sussurrou:

– E quem é o responsável, Monsieur? O Governo!

“Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável”, refletiu Sigaev. “Se me condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro será todo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele... Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo e encetarei escandaloso processo de divórcio...”

– Aqui está, Monsieur, um sistema novo – comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. – Chamou-lhe a atenção para o mecanismo original do cão...

Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Em compensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe os artigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, o sujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.

–Bem – balbuciou. – Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...

Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, para suavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que? Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveram numa rede de cor verde, pendurada junto à porta.

– E isso? Que é isso? – perguntou.

– É uma rede para caçar codornas.

– Qual o preço?

– Oito rublos.

– Pois pode mandar embrulhar.

O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vez mais ofendido, saiu da loja.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A MENTIRA

In: KOSZTOLÁNYI, Dezső. O tradutor cleptomaníaco. Tradução de Ladislao Szabó. São Paulo: 34, 1996)

– Como se deve mentir? – meditava Kornél Esti.

A psicologia experimental sugere que, quando queremos ter pre­textos, devemo-nos referir a fatos que a todo momento aparecem na vida. Se, por exemplo, somos convidados para jantar e não temos vontade de ir, devemos buscar uma doença inocente: dor de cabeça, resfriado etc. Como essas são as doenças mais freqüentes, é óbvio que – dentro da lei das probabilidades – acreditarão.

Só que não é assim. Pode ser que séculos atrás tais desculpas ainda surtissem efeito. Desde lá se desgastaram. Porque as dores de cabeça e os resfriados são freqüentes não só na prática, mas também no re­pertório de mentiras.

Muitas vezes aconteceu de não ir a algum lugar porque realmente a minha cabeça doía e estava resfriado. Mas, nesses casos, apoiar-se nessa desculpa é mais grosseiro do que simplesmente escrever: “Vo­cês me entediam, eu vos abomino, estou pouco me lixando”. De modo que eu não apresento a verdade mentirosa, mas crio uma verdadeira mentira. Imaginem que, ao cortar as unhas, a tesoura escapa e entra no dedão do meu pé, não consigo me levantar, tenho que colocar com­pressas na ferida, ou um gato vadio me mordeu e tive que ir correndo ao Instituto Pasteur para me vacinar contra raiva.

Essas mentiras são melhores. Por quê? Porque são inverossímeis. As mentiras querem ser verossímeis – é esse o seu sinal de reconheci­mento – e assim, quando as pessoas ouvem um absurdo tão impro­vável, tão audaz, a última coisa que pensariam é que estão ouvindo uma mentira, porque essas mentiras são tão transparentes, como em geral são as mentiras, mas as mais imbecis mentiras já são tão imbe­cis, que já nem são mentiras. Não questiono que no primeiro instante talvez apareça uma sombra de dúvida no ouvinte, de que querem fazê-lo de bobo, mas no instante seguinte rejeita indignado tal suposição; afinal seria ofensivo até imaginar que alguém tentasse lhe passar tal conversa, alguém que é tão inteligente quanto o ouvinte. O que se sucede depois disso? Não pensa que é uma mentira das grossas, mas sim uma das casualidades sempre surpreendentes e imprevisíveis da vida, que lhe pregara tantas peças parecidas. A própria história louca o diverte. No fim, quase sempre, a coisa cola.

Aquele que chega tarde a uma reunião pode jurar que teve uma visita inesperada. Ninguém vai lhe dar ouvidos. Mas se o indivíduo disser que atropelou um cachorro com o seu carro – um lindo filhote de raça, que mal completara um ano – e que o levou imediatamente o cachorro para a Faculdade de Veterinária, e que ele lá faleceu na mesa de operações, apesar de implantes e demais tentativas de salvamento, então a mentira brilhará sob a luz da aventura e da verdade. Só o inveros­símil é realmente verossímil, só o inacreditável é realmente acreditado.

O reconhecimento dessa verdade é que me salvou num momento crítico da minha vida. Cheguei com duas horas de atraso a um lugar onde era ansiosamente esperado. Era impossível comunicar a verdade, porque ela – como em muitos casos – era mais ofensiva, mais de­selegante do que a mais grossa das mentiras. Também não consegui encontrar nenhuma desculpa que explicasse meu descaso. Nesse meu transtorno desesperante – com a certeza do instinto aguçado –, murmurei qualquer bobagem. Disse que estivera com Gálffy, um conheci­do meu do interior, que – como a maioria dos presentes sabia – morrera havia dois anos. Como eu bem sabia.

Mas rapidamente detalhei que Gálffy estava vivo, sua morte na­quela época aparecera nos jornais por um equívoco divertido, e não foi retificada por um equívoco ainda mais divertido: fora isso o que me contara meu amigo renascido das cinzas durante essas duas horas, e foi isso que eu contei para os presentes, com tantos detalhes e reviravoltas surpreendentes, que em tudo acreditaram e todos me perdoaram. Não tinha que recear que depois fossem verificar os fatos. Gálffy lhes era bastante indiferente. Deixei-o viver por seis meses. Depois, numa noite, o matei. Durante uma conversa, comuniquei que Gálffy realmente morrera. Não senti nenhum remorso por este assassinato. Ele realmente não levaria a mal. E, pensando bem, só poderia me ser grato por ter vivido, graças à minha imaginação, por mais meio ano, se não em outro lugar, pelo menos na imaginação de cinco ou seis pessoas.

À parte devo falar das mulheres. Elas não mentem – como equivocadamente se anuncia –, apenas ressaltam uma parte da verdade, Quando uma mulher tem um encontro na Ilha das Margaridas, não diz que ficou em casa tricotando, mas sim que foi passear nas mar­gens do Danúbio. Qual é a explicação para isso? E que a ilha fica de fato no Danúbio, e o próprio passeio está próximo à verdade, com o adendo, que obviamente não é mencionado, de que não passeou sozi­nha. Em toda a mentira feminina existe um pingo de verdade. Esta é a base moral de suas mentiras. E é por isso que são perigosas. Fincam seus pés num minúsculo pedaço de terra, e defendem a sua mentira com tanta convicção, resolução e ardor bem intencionado como se estivessem defendendo a verdade. É impossível tirá-las desse lugar. Os poucos fatos são plasticamente ajustados aos fatos que não existem. Confesso que muitas vezes consigo admirar suas mentiras, como ad­miro sua leveza, suas proporções, suas delicadas nuances, como as de uma poesia. São perfeitas no seu gênero. Nós temos um sistema origi­nal e corajoso. Elas têm prática, que remonta há milênios. Neste gê­nero, nós podemos ser amadores mais ou menos talentosos e até sá­bios. Mas elas é que são as mestras, as artistas, as poetisas.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

FLOR, TELEFONE, MOÇA

(ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de Aprendiz. Rio de Janeiro: Editora Record,1951)

Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos.

Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho.

– Sei de um caso de flor que é tão triste!

E sorrindo:

– Mas você não vai acreditar, juro.

Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira.

– Era uma moça que morava na Rua Gerenal Polidoro, começou ela. Perto do Cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte.

Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada.

Se o enterro era mesmo muito importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério, para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição de família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstimo até o lugar do sepultamento. Deve Ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar pra passear no Rio! E no caso da moça, quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo. Coitada!

– No interior isso não é raro...

– Mas a moça era de Botafogo.

– Ela trabalhava?

Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando, isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, "deslizar" pelas ruinhas brancas do cemitério, mergulhada em cisma.. Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim, há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, e as covas mais modestas. E deve Ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor.

– Que flor?

– Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso.

Se a moça jogou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa bem quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu.

– Aloooô...

– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?

A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem compreender:

– O quê?

Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois, o telefone chamava de novo.

– Alô.

– Quede a flor que você tirou de minha sepultura?

Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada.

– Está aqui comigo, vem buscar.

No mesmo tom lento, severo, triste, a voz respondeu:

– Quero a flor que você me furtou. Me dá minha florzinha.

Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa:

– Vem buscar, estou te dizendo.

– Você bem sabe que eu não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero minha flor, você tem obrigação de devolver.

– Mas quem está falando aí?

– Me dá minha flor, eu estou te suplicando.

– Diga o nome, senão eu não dou.

– Me dá minha flor, você não precisa dela e eu preciso. Quero minha flor, que nasceu na minha sepultura.

O trote era estúpido, não variava, e moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada.

Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente, foi atender.

– Alô!

– Quede a flor...

Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada voltou à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse:

– Olhe, vire a chapa, já está pau.

– Você tem que dar conta de minha flor, retrucou a voz de queixa. Pra que foi mexer logo na minha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, já acabei. Me faz muita falta aquela flor.

– Essa é fraquinha. Não sabe de outra?

E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a idéia daquela flor, ou antes, a idéia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Pela voz não seria fácil acertar. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de interurbano. Parecia vir de mais longe ainda... Você está vendo que a moça começou a ter medo.

– E eu também.

– Não seja bobo. O fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que seu sossego eterno – admitindo que se tratasse de pessoa morta – ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse, ela tomaria providências.

A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalara a voz.) Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas o curioso é que, quando se referiam a ele, diziam "a voz".

– A voz chamou hoje? Indagava o pai, chegando da cidade.

– Ora. É infalível, suspirava a mãe, desalentada.

Descomposturas não adiantavam, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a freqüentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava a rede dos telefones particulares. Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir?

O rapaz começou a tocar para todos os telefones da Rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia... Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era –, desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a uma certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências. Mas infrutíferas.

Claro que a moça deixou de atender telefone. Não falava mais nem com as amigas. Então a "voz", que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais "você me dá minha flor", mas "quero minha flor", "quem furtou minha flor tem que restituir", etc. Diálogo com essas pessoas a "voz" não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a "voz" não dava explicações.

Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalos, mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade – o fato é que não se apurou nada. Então o pai correu à Companhia Telefônica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores de ordem técnica...

– Mas é a tranqüilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de telefone?

– Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apurava mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para sua casa, tranqüilize a família e aguarde os acontecimentos. Vamos fazer o possível.

Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria mais ver enterro passando? Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque – já disse que era distraída – nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse...

O irmão voltou do São João Batista dizendo que, do lado por onde a moça passeara aquela tarde, havia cinco sepulturas plantadas. A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente sobre os cinco carneiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido.

Mas a "voz" não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume – isso não dizia a voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava?

O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos são impotentes, quando alguém quer alguma coisa até sua última fibra, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora, que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e esta flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança?

– Mas, e a moça?

– Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu.